sábado, 21 de julho de 2012

Quintaneando o Mário Dali



E quando se vê já são seis horas...
E quando se vê já é hora de acordar, correr, pintar, descabelar, lavar. Vestir a máscara, pegar o jornal, fechar o portão e 1,2,3... gravando! A cena da vida está começando... ou será terminando? A rotina te faz menos... te transforma em uma função, adequação, razão, equação.
Quando se vê já são sete horas,
O ônibus ainda não chegou, o trânsito já canta com suas buzinas, aceleradas e freiadas. Grito de dor ou prazer? O motorista sorri, o cobrador automaticamente, junto com o troco, dá o bom dia, passageiros veem passar, passar, passar...
Quando se vê já são dez horas,
O pânico e estresse do ‘ter que dar certo’, do mostrar que somos máquinas perfeitas e que vencemos todas as adversidades que o sistema capitalista impõe pra ser cada vez mais rigoroso, competitivo, frio e sádico.
Quando se vê já são meio dia,
A comida desce, os passos levam e trazem automaticamente, o telefone diminui um pouco a solidão no meio de tanta gente-máquina, ou maquina-gente? O chocolate - no doce de viver -  o café - no quente de sentir -, o chimarrão - no gosto de compartilhar: a cumplicidade do excêntrico, do diferente àquele lugar.
Quando se vê já são dezessete horas,
A cobrança aumenta, os olhos secam, a garganta xinga, magoa, fere e reduz. A inteligência reproduz a burrice, o telefone mente, engana e ilude.
Quando se vê já são dezoito horas,
Já é hora de pegar no giz, de sonhar com um futuro melhor, almejando a mudança, o avanço, o sonho; a utopia continua,
Quando se vê são vinte horas,
Os pés cansam, as mãos anseiam o quadro, os olhos outros olhos, o sorriso a esperança.
Quando se vê já são vinte e duas horas,
As luzes do corredor se acendem, os pés se guiam àquela porta que os levou à cena, bolsa largada, corpo espalhado, paredes vazias, nem os negões batucam mais. Fim de espetáculo, porque daqui a pouco, novamente, já serão seis horas e a certeza que fica é que 'A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.'



terça-feira, 20 de março de 2012

O Jardim Botânico


Mais um dia de grande cansaço no escritório. O chefe com seu bigode e barriga insuportáveis, os colegas cínicos, as colegas concorrentes. A violeta que decora a minha mesa, também alegra o meu trabalho.
Olho para o relógio desesperadamente e meu entusiasmo se dá quando os ponteiros me mostram o chegar das dezoito horas. Encerro o expediente e a falsidade que sustenta o meu viver nesta selva de pedras.
Passo pelos meus companheiros diários: a menina de radinho na mão escutando funk, a senhora com seu cão em busca de uma companhia, o senhor do chapéu baixo, o guri do chapéu alto. São pessoas que, assim como a mercearia de Seu Cristovão ou a padaria da Dona Joana, compõem a minha trajetória até em casa. Vendo-os me sinto parte de um todo e pergunto-me: Será que os outros fragmentos deste todo são tão solitários quanto eu?
Chego em casa, abro meu portão e encerro-me do mundo. Minha prisão, meu calabouço à espera de um príncipe encantado? Subo as escadas para evitar o elevador e me oportunizar o encontro inesperado que espero a tanto tempo em uma das curvas de minha vida. Chego à minha porta tão só e desiludida como sempre estou. O barulho da chave sacudindo de felicidade em abri-la é o mesmo ao fechá-la.
Abro a janela em busca de um pouco de companhia. Mesmo que seja, ao longe, e do mundo; dos carros, aviões, metrôs. Mesmo que não seja nenhum deles direcionado a mim. Sinto-os como meus. Peço descanso, pois canso de ser sozinha. O crepúsculo enfim chega e com ele um pouco mais de sossego. A cidade se prepara para dormir. Depois do banho, enrolada na toalha ainda, faço meu chá de camomila e antes de me deitar, percebo que esqueci a janela aberta. Vou até ela, e respiro o último suspiro da noite. Quando abro os olhos percebo no prédio ao lado outra luz acessa, com uma sombra que me olha. Observo-o discretamente e percebo que também está solitário como eu. Com sua xícara na mão, idealizo que ele escuta Tom Zé ou ainda Fabiana Cozza; nada muito romântico, mas sim, que venha de dentro.
Finalmente, nossos olhares se cruzam e antes do sorriso, um profundo silenciar de respiração. Por alguns instantes, ele some. E quanto estou quase fechando a janela, percebo seu corpo a uma discreta longitude de meu olhar, sem a camisa. Sem pensar, não sai do lugar, não pisquei e nem bebi o chá. Fiquei imóvel, semimorta, à espera de seus próximos movimentos, segurando a toalha. Ele provavelmente, me observava, pois sabendo-me voyeur dele em seu solitário prazer, aproximou-se da janela, como se estivesse ao telefone, e de costas começou a tirar as calças, bem devagar.
Ao se virar, sua cueca boxer, clara, deixava transparecer nitidamente sua ereção e excitação. Ele continuava no telefone e quando me olhou diretamente, coincidentemente meu telefone tocou. Deixei cair a toalha, de nervosa, e ao atender, minha mãe diz que vem me visitar no final de semana, trazendo a avó para passear.
Volto à janela e olho novamente. Nada além do Jardim Botânico, meu vizinho, e seu completo isolamento e escuridão.