sábado, 11 de maio de 2013

A ressurreição da cinta-liga



Há muitos e muitos assuntos que eu poderia escolher para recomeçar/atualizar a escrita neste blog. Porém o título surge como uma resposta ao questionamento que recebi hoje: Você usaria cinta-liga?  De imediato, lembrei a primeira vez que a usei: com meu primeiro namorado, há pelo menos mais de uma década. Tentei refazer os cálculos gravitacionais que habitaram esse tempo e os destroços que em mim causaram... A primeira imagem atualizada refletiu-se em forma de riso, me senti ridícula ao me imaginar dentro de uma, hoje. Porém, depois, pensando neste sentir-se ridícula, pensei... ridícula serei se continuar rindo de minha realidade.
De fato, várias pessoas me julgarão por essa escrita, porém o que tenho para dizer a elas é: fodam-se. Estou aqui para quem em mim consegue ver beleza, em corpo e alma. E se eu não for uma delas... quem estará fudida serei eu...
Assim serve para todos os outros elos que me formam Renata. Conversando com meu pai, sobre a decadência educacional e mostrando-lhe minha revolta, ele me diz: “Tu só irás te estressar e não resolverás nada. Faz o que querem que tu faças e tudo fica bem.” Desculpa, pai, mas nãooooooooooooooo. Se além de cinta-liga, tiver que usar um chicotinho para balançar os estudantes que por mim passarem, assim farei! Não admito render-me às calçolas de quem já desistiu de sentir prazer. Não admito vivenciar a escola sem sentir-me viva e atuante em meus propósitos e quereres.
Na última segunda-feira, defendi minha dissertação, e fui prejudicada, em termos de conceito final (B) porque respondi às questões levantadas pela banca por experiências vividas em campo, no decorrer da pesquisa, e não com teoria... sinceramente, foi o B mais feliz de toda minha vida acadêmica. Que bom que ainda tenho em mim, a prática acima da teoria, o acreditar que a Utopia acontecerá e não somente ficar olhando o horizonte que se transforma... Sim, foi um B merecido e muito bem recebido...
Ainda, ontem visitei um amigo que teve diagnosticado câncer. Ele me falou: “a gente se dá conta de que viver é muito prático. Ou a gente quer viver ou a gente morre.”
É isso, eu estava morrendo novamente. E foi Neruda quem veio me acordar para cuspir hoje, depois de todas estas experiências que tive. Disse-me ele: 

Morre lentamente quem não viaja
Quem não lê,
Quem não ouve música,
Quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente, 
Quem destrói seu amor próprio
Quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente, 
Quem se transforma em escravo do hábito, 
Repetindo todos os dias os mesmos trajetos,

Quem não muda de marca,
Não se arrisca a vestir uma nova cor,
Ou não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente,
Quem evita uma paixão e seu redemoinho de emoções,
Justamente as que resgatam o brilho dos olhos,
E os corações aos tropeços.

Morre lentamente,
Quem não vira a mesa quando está infeliz,
Com o seu trabalho, ou amor,
Quem não arrisca o certo pelo incerto,
Para ir atrás de um sonho,
Quem não se permite,
Pelo menos uma vez na vida,
Fugir dos conselhos sensatos…

Ressuscitei!
Depois de um tempo mumificada, aqui estou de novo, Renascida, conforme o próprio nome já diz!



sábado, 21 de julho de 2012

Quintaneando o Mário Dali



E quando se vê já são seis horas...
E quando se vê já é hora de acordar, correr, pintar, descabelar, lavar. Vestir a máscara, pegar o jornal, fechar o portão e 1,2,3... gravando! A cena da vida está começando... ou será terminando? A rotina te faz menos... te transforma em uma função, adequação, razão, equação.
Quando se vê já são sete horas,
O ônibus ainda não chegou, o trânsito já canta com suas buzinas, aceleradas e freiadas. Grito de dor ou prazer? O motorista sorri, o cobrador automaticamente, junto com o troco, dá o bom dia, passageiros veem passar, passar, passar...
Quando se vê já são dez horas,
O pânico e estresse do ‘ter que dar certo’, do mostrar que somos máquinas perfeitas e que vencemos todas as adversidades que o sistema capitalista impõe pra ser cada vez mais rigoroso, competitivo, frio e sádico.
Quando se vê já são meio dia,
A comida desce, os passos levam e trazem automaticamente, o telefone diminui um pouco a solidão no meio de tanta gente-máquina, ou maquina-gente? O chocolate - no doce de viver -  o café - no quente de sentir -, o chimarrão - no gosto de compartilhar: a cumplicidade do excêntrico, do diferente àquele lugar.
Quando se vê já são dezessete horas,
A cobrança aumenta, os olhos secam, a garganta xinga, magoa, fere e reduz. A inteligência reproduz a burrice, o telefone mente, engana e ilude.
Quando se vê já são dezoito horas,
Já é hora de pegar no giz, de sonhar com um futuro melhor, almejando a mudança, o avanço, o sonho; a utopia continua,
Quando se vê são vinte horas,
Os pés cansam, as mãos anseiam o quadro, os olhos outros olhos, o sorriso a esperança.
Quando se vê já são vinte e duas horas,
As luzes do corredor se acendem, os pés se guiam àquela porta que os levou à cena, bolsa largada, corpo espalhado, paredes vazias, nem os negões batucam mais. Fim de espetáculo, porque daqui a pouco, novamente, já serão seis horas e a certeza que fica é que 'A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.'



terça-feira, 20 de março de 2012

O Jardim Botânico


Mais um dia de grande cansaço no escritório. O chefe com seu bigode e barriga insuportáveis, os colegas cínicos, as colegas concorrentes. A violeta que decora a minha mesa, também alegra o meu trabalho.
Olho para o relógio desesperadamente e meu entusiasmo se dá quando os ponteiros me mostram o chegar das dezoito horas. Encerro o expediente e a falsidade que sustenta o meu viver nesta selva de pedras.
Passo pelos meus companheiros diários: a menina de radinho na mão escutando funk, a senhora com seu cão em busca de uma companhia, o senhor do chapéu baixo, o guri do chapéu alto. São pessoas que, assim como a mercearia de Seu Cristovão ou a padaria da Dona Joana, compõem a minha trajetória até em casa. Vendo-os me sinto parte de um todo e pergunto-me: Será que os outros fragmentos deste todo são tão solitários quanto eu?
Chego em casa, abro meu portão e encerro-me do mundo. Minha prisão, meu calabouço à espera de um príncipe encantado? Subo as escadas para evitar o elevador e me oportunizar o encontro inesperado que espero a tanto tempo em uma das curvas de minha vida. Chego à minha porta tão só e desiludida como sempre estou. O barulho da chave sacudindo de felicidade em abri-la é o mesmo ao fechá-la.
Abro a janela em busca de um pouco de companhia. Mesmo que seja, ao longe, e do mundo; dos carros, aviões, metrôs. Mesmo que não seja nenhum deles direcionado a mim. Sinto-os como meus. Peço descanso, pois canso de ser sozinha. O crepúsculo enfim chega e com ele um pouco mais de sossego. A cidade se prepara para dormir. Depois do banho, enrolada na toalha ainda, faço meu chá de camomila e antes de me deitar, percebo que esqueci a janela aberta. Vou até ela, e respiro o último suspiro da noite. Quando abro os olhos percebo no prédio ao lado outra luz acessa, com uma sombra que me olha. Observo-o discretamente e percebo que também está solitário como eu. Com sua xícara na mão, idealizo que ele escuta Tom Zé ou ainda Fabiana Cozza; nada muito romântico, mas sim, que venha de dentro.
Finalmente, nossos olhares se cruzam e antes do sorriso, um profundo silenciar de respiração. Por alguns instantes, ele some. E quanto estou quase fechando a janela, percebo seu corpo a uma discreta longitude de meu olhar, sem a camisa. Sem pensar, não sai do lugar, não pisquei e nem bebi o chá. Fiquei imóvel, semimorta, à espera de seus próximos movimentos, segurando a toalha. Ele provavelmente, me observava, pois sabendo-me voyeur dele em seu solitário prazer, aproximou-se da janela, como se estivesse ao telefone, e de costas começou a tirar as calças, bem devagar.
Ao se virar, sua cueca boxer, clara, deixava transparecer nitidamente sua ereção e excitação. Ele continuava no telefone e quando me olhou diretamente, coincidentemente meu telefone tocou. Deixei cair a toalha, de nervosa, e ao atender, minha mãe diz que vem me visitar no final de semana, trazendo a avó para passear.
Volto à janela e olho novamente. Nada além do Jardim Botânico, meu vizinho, e seu completo isolamento e escuridão.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Querem audiência?

Hoje recebi um email de minha mãe, ISTO MESMO, minha mãe, PROPAGANDO um site diferente de religião que ela segue. pensei: poxa, se até a mãe não concorda com o que que tu faz, ou é muito ruim ou é  muiito bom....Resolvi acredittar na vitória do muiito bom, e com isso espero a resposta das Deyques, Daianes, Rogérios, Batistas, Simones, Anas, Carlas, Mateus's, Tatianes, Helenas, Goulard's e tantos outros que me incentivaram a ser como sou hoje. Não coloco a minha culpa neles, muiito menos em minha família, antes  disso;  queria dividir o aluguel, a luz, a net, a ração do Ikopórã com vocês. Digo que cada um de vocês, por mais que nunca vejam esse ensait, como a Josi Munhoz que tanto me fez  chorar noites em vão, são importantes na minha constituição e resistência enquanto  cidadã.  Obrigada pelo sorriso, e desculpa se até aqui não consegui dividir contigo(sigo) nenhuma sensação.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Nada de novo no Front

Hoje apresentei um seminário sobre Nada de novo no Front – Erick Maria Remarque - a obra trata de um grupo de estudantes alemães de 19 anos, em média, que se alistam para a Primeira Guerra. Porém, essa frase de impacto é-nos apresentada ao final da narrativa quando o narrador-personagem (último dos sete colegas) “tomba na linha de frente”.
Pensando nos últimos acontecimentos de minha vida, e a leitura do livro faz parte deles, relaciono o que tenho vivido com as experiências narradas pelo personagem Paul, o narrador. Ele se assume como alguém sem futuro, já que não tem uma profissão e não há uma família que o espere. Pais e irmãos já não são motivos para se manter vivo na linha de frente. Partindo dessa metáfora, penso: o que me mantém viva? Tenho mais de dez anos de diferenças deste adolescente e posso vincular-me ao mesmo raciocínio. Meus pais e irmãs são ouro em minha vida, mas não são o motivo que me mantém na linha de frente de minha batalha, e ainda em pé. Se eu disser que vivo para o estudo, como muitas pessoas pensam, estarei mentindo, é evidente que também não vivo para acumular bens – chega a ser engraçado pensar isso – não vivo pensando em constituir uma família, nem plantar árvores, e quem sabe um dia lançar um livro... porém também não é esse o motivo de minha vida. Afinal, o que me mantém viva?
Acho que a resposta veio em forma de perguntas, ontem, quando conversava com um amigo com o mesmo dilema de caminhos a percorrer. Estou viva para me constituir. E “na medida do possível,  procuramos adaptar-nos da melhor forma às situações que surgem, aproveitando todas as oportunidades e passando diretamente, sem transição, dos estremecimentos de horror às piadas mais tolas. Não podemos agir de outra forma, é assim que nos encorajamos.” (Remarque: 1974, 189)
É isso, as tentativas de ataques de nossos inimigos – pessoas e/ou situações que te magoam, maltratam, humilham, ridicularizam só serão vencidas se conseguirmos chegar às piadas tolas, pois se há o horror, não se pode valorizá-lo ainda mais, é necessário dissimulá-lo até que ele já não exista. Até que e transforme em apenas uma lembrança a mais de todo o nosso repertório de existência.
Nos últimos meses, encontrei pessoas que me julgaram sem conhecer verdadeiramente, que fingiram ser o que não eram por uma situação vil e ridícula, que fugiram disfarçadas de outrem para não encarar um diálogo sincero... essas situações me enfraqueceram, me fizera chorar, me ferem ainda hoje, diante da realidade que me levaram, porém eu sei que estou apenas na linha de frente e que aqui não é meu lugar permanente. Estou em luta e manter a seriedade e vida é o objetivo.
Então, a única arma que encontro para enfrentar essas situações é o riso. Normalmente, quem te proporciona este armamento são as outras pessoas, aquelas que voltam ao campo de batalha para te buscar e apoiar, e que a palavra amigo perde o sentido quando colocada do lado do companheiro. Este mesmo companheiro que volta porque sabe o horror que é estar sozinho e perdido no meio da guerra, é que será o responsável por achar motivos para que os dois possam, posteriormente, rir – e muito – da situação enfrentada.
Ao final, quando já outras batalhas tiverem sido vencidas, ambos companheiros, rindo, lembraram : " - Afinal, não há nada de novo no Front." 

sábado, 6 de agosto de 2011

Mulher e Literatura

Queria, mas não tenho como, dar conta de tudo que me acomete neste momento no que se refere ao Mulheres e Literatura, ocorrido em Brasília nos últimos dias. Fica o registro:

06/08/2011
20:56:52
Guga
Renata Avila Troca
tá feliz por se descobrir louca?!
06/08/2011
20:56:57
Renata Avila Troca
Guga
sim
06/08/2011
20:56:59
Renata Avila Troca
Guga
rsrsrsrs
06/08/2011
20:57:02
Renata Avila Troca
Guga
euu
06/08/2011
20:57:07
Renata Avila Troca
Guga
obrigada
06/08/2011
20:57:12
Guga
Renata Avila Troca
minha nossa! É o primeiro sintoma da loucura!
06/08/2011
20:57:39
Guga
Renata Avila Troca
ou o último?!
06/08/2011
20:57:49
Renata Avila Troca
Guga
sei lá,
06/08/2011
20:57:55
Renata Avila Troca
Guga
mas hj to mto feliz

Guga, é um amigo-irmão-marido que acompanha um grande e doloroso processo de descoberta e redescoberta  meu. E ele entende natural e felizmente quando digo que estou feliz por me descobrir louca. Louca por ter uma cor clara, e me declarar negra; louca por ter uma linha partidária na família e não me posicionar de forma alguma contra, nem muito menos a favor, enfim, quando o partido for unido talvez faça algum sentido político... Louca por abandonar um lar por um dar. Louca por me permitir ser, sem saber ao certo o que sou. 
No entanto, essa loucura foi acentuada e registrada neste dia, 06/08/11, porque registra o término do Seminário Mulher e Literatura (XIV Nacional e V Internacional). Disse-me Ele (assim como outros grandes amigos, colegas, companheiros, sonhadores, familiares e curiosos apenas) que queria saber o que eu andei aprontando aqui em Brasília onde me localizo no momento em que escrevo essas linhas.
Antes, porém, de dizer o que andei aprontando, quero dizer o que andei conhecendo.

Conheci, e aprendi a admirar, antes de tudo, uma mulher. Um sorriso, um olhar, um abraçar e confiar. Givânia. Este nome marca a minha história. Uma Renata Negra, nascida em Recife, filha dos Quilombos. Voz dos quilombolas, sonho dos negros e negras que assim como ela, exigem respeito por seus direitos constitucionais. Esta mulher me deu não somente a moradia, mas ensinamento do que é ser negro no Brasil, do que é ser solidário no Brasil; do que deveria ser brasileiro dentro e fora do Brasil.
Conheci vozes negras, há muito escondidas pelas burocracias literárias: Rosária, Fátima, Odete Semedo, Vera Duarte, Sonia Sultuane, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira, Geni Guimarães, Cristiane Sobral, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Miriam Alves, Madu – que se perdeu e se achou nos caminhos desta literatura junto comigo. Conheci pesquisas, sonhos, viagens, escritas, vozes, performances, lutas, revoluções, reivindicações, preconceitos, forças, gritos e SIM onde se queria ouvir não.

Encontrei lágrimas de sangue de irmãs africanas que não sabia que continha em meus poros tão claros e encontrei em meus cachos o sorriso de lisos reprimidos em cabeças escuras. Encontrei cinema, teatro, música, brumas de uma ilha não tão distante. Encontrei Laura que Cavalga e é brilhante.


Não encontrei Tavares, a quem vim buscar. Mas encontrei o remorso, e agora com S, de ter esquecido aquele que muitas vezes já o foi. Encantei-me pela oportunidade de estar frente a frente com a autora angolana, e deixei de lado aquele que tem andado lado a lado comigo. Seu Beto, aquele que tem sido minha bandeira, meu grito, meu lamento e orgulho. Meu eu violento, masculino e machista. Meu eu revolucionário e cheio de defeitos, loucuras e medos.

Foi porém, após o aprendizado de ver a velha negra, Conceição, levantar a cabeça e dizer: Batam palmas, porque este é o nosso momento e o merecemos, Foi porém após ter cantado “Olha o Combo”, Foi porém, após ter chorado com Odete Semedo, Foi porém após ter viajado com as palavras de  Sonia Sultuane, Foi porém após ter conversado com a professora Edileusa Souza que aprendi que as insubmissas lágrimas de mulher não verão mais o chão.

Guga, estou pronta para Guerra. Armada com as armas de Tettamanzy; o que me são suficientes para enfrentar as próximas limitações que tentarão  - em vão – calar a mim,  a Seu Beto e a  todas as outras Poéticas Orais.

Então, o que aprontei aqui, foi mais ou menos isso: sabe aquelas crianças mutiladas, aquelas circuncisões femininas, aqueles lugares negados no emprego, o olhar desconfiado no ônibus... pois é, é mais ou menos isso que andei devolvendo em minha performance durante os meus maiores e melhores quinze minutos de intensa fama. 

Agora, guardo a mateira e me preparo para voltar ao RS... minha Pasárgada de sorriso estampado e coração alargado de tanta emoção.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Chuva


Li um poema ruim agora... ele falava que a chuva é formada de lágrimas de desaprovação de deus pelo que estamos fazendo com o mundo. Critiquei o moralismo existente. Não devemos julgar nada nem ninguém, apenas cuidar de nossa parte. Não sei se o autor dele separa o lixo, ou ajuda aos velhinhos a atravessar a rua, também não me interessa isso. O que interessa é que todos nós estamos mergulhados em defeitos, fraquezas e completo abandono.
Defeitos que talvez nem percebamos, ou que queremos nos manter cegos para não enxergá-los. Ou ainda, temo-los nos olhos dos outros e que jamais seremos capazes de vê-los refletidos no espelho de nossa outra metade da alteridade. Defeitos que transformam e excluem nossas qualidades e virtudes. Que fazem com que nossos sorrisos cessem e na volta dos lábios se criem rugas.
Fraquezas por não aceitar que temos tantos e tão graves defeitos. Fraquezas de saber que nossas escolhas nem sempre são as certas, e que, às vezes, mesmo tentando acertar temos como alvo o erro. Fraquezas de não saber cumprir o que a razão nos ensina. Fraquezas que nos transformam em sujeitos com cada vez mais e mais defeitos. Mas são fraquezas que acima de tudo nos transformam em sujeitos.
Abandono. Pois eu não existo longe do outro. Sou um cão escondido em meus pêlos molhados num dia chuvoso que chora baixinho a minha solidão. Mas que ainda assim, esse choro carrega a esperança de chegar a um outro que venha em minha direção. Que não veja um ser fedido, ou um animal raivoso, ou ainda um contaminador de ambientes saudáveis e felizes como o é todo aquele lugar em que nunca estive.
Esse cão chora também aqui debaixo da minha cama, no corredor de meu prédio, na esquina de minha quadra, no banco do motorista e também do cobrador dos ônibus que utilizo diariamente. Esse mesmo cão está presente na pessoa que senta ao meu lado no ônibus, como naquela que fica em pé segurando o peso de seu futuro materializado em páginas e páginas. Ele também está naquele cego que mescla chicles da Clarice, como nas mulheres de guerra de Tavares. Nos catadores de lixo amigos, e inimigos, de Seu Beto, como no olhar da Joana pedindo pandorga.
Estejamos todos nós preparados para os dias de chuva, com seus milhares de cães presentes em nossos espelhos.
Nossa alteridade; talvez seja isso que as gotas de chuva esparramam em nosso caminho, nas janelas de nossas casas e também dos automóveis que nos carregam, sem mesmo olharmos as pessoas que estão conosco, nos bancos da frente ou de traz, no guarda-chuva fechado... e talvez também seja por isso que tanta gente foge daquele banho “abençoado” de chuva... reclamando quando molha o cabelo, as mãos, os pés... isso porque chegando em nossa matéria física, essa alteridade torna-se mais próxima de nossa alma.