terça-feira, 20 de março de 2012

O Jardim Botânico


Mais um dia de grande cansaço no escritório. O chefe com seu bigode e barriga insuportáveis, os colegas cínicos, as colegas concorrentes. A violeta que decora a minha mesa, também alegra o meu trabalho.
Olho para o relógio desesperadamente e meu entusiasmo se dá quando os ponteiros me mostram o chegar das dezoito horas. Encerro o expediente e a falsidade que sustenta o meu viver nesta selva de pedras.
Passo pelos meus companheiros diários: a menina de radinho na mão escutando funk, a senhora com seu cão em busca de uma companhia, o senhor do chapéu baixo, o guri do chapéu alto. São pessoas que, assim como a mercearia de Seu Cristovão ou a padaria da Dona Joana, compõem a minha trajetória até em casa. Vendo-os me sinto parte de um todo e pergunto-me: Será que os outros fragmentos deste todo são tão solitários quanto eu?
Chego em casa, abro meu portão e encerro-me do mundo. Minha prisão, meu calabouço à espera de um príncipe encantado? Subo as escadas para evitar o elevador e me oportunizar o encontro inesperado que espero a tanto tempo em uma das curvas de minha vida. Chego à minha porta tão só e desiludida como sempre estou. O barulho da chave sacudindo de felicidade em abri-la é o mesmo ao fechá-la.
Abro a janela em busca de um pouco de companhia. Mesmo que seja, ao longe, e do mundo; dos carros, aviões, metrôs. Mesmo que não seja nenhum deles direcionado a mim. Sinto-os como meus. Peço descanso, pois canso de ser sozinha. O crepúsculo enfim chega e com ele um pouco mais de sossego. A cidade se prepara para dormir. Depois do banho, enrolada na toalha ainda, faço meu chá de camomila e antes de me deitar, percebo que esqueci a janela aberta. Vou até ela, e respiro o último suspiro da noite. Quando abro os olhos percebo no prédio ao lado outra luz acessa, com uma sombra que me olha. Observo-o discretamente e percebo que também está solitário como eu. Com sua xícara na mão, idealizo que ele escuta Tom Zé ou ainda Fabiana Cozza; nada muito romântico, mas sim, que venha de dentro.
Finalmente, nossos olhares se cruzam e antes do sorriso, um profundo silenciar de respiração. Por alguns instantes, ele some. E quanto estou quase fechando a janela, percebo seu corpo a uma discreta longitude de meu olhar, sem a camisa. Sem pensar, não sai do lugar, não pisquei e nem bebi o chá. Fiquei imóvel, semimorta, à espera de seus próximos movimentos, segurando a toalha. Ele provavelmente, me observava, pois sabendo-me voyeur dele em seu solitário prazer, aproximou-se da janela, como se estivesse ao telefone, e de costas começou a tirar as calças, bem devagar.
Ao se virar, sua cueca boxer, clara, deixava transparecer nitidamente sua ereção e excitação. Ele continuava no telefone e quando me olhou diretamente, coincidentemente meu telefone tocou. Deixei cair a toalha, de nervosa, e ao atender, minha mãe diz que vem me visitar no final de semana, trazendo a avó para passear.
Volto à janela e olho novamente. Nada além do Jardim Botânico, meu vizinho, e seu completo isolamento e escuridão.

Um comentário:

Lizard-king disse...

Adorei a forma como ele se desfechou e mostra na sua narrativa a impermanência das coisas na vida. O que mais gostei de todo o texto foi a pergunta que a narradora se faz, perguntando-se se aqueles fragmentos tão solitários do resto do mundo também não pertenceriam a ela.
E foi surpreendente pois parecia que ia terminar numa epifania ou algo assim, e termina numa quase tentativa de voyeurismo rsrs.

Me lembrou tb uma letra do Nei Lisboa, Rima Rica Frase Feita "Nasci e morro assim só, perdido no escuro dentro de mim" (...) " Mas a força eu retiro, sugo feito vampiro, de saber que as estrelas tb vivem sós.."